sábado, 23 de maio de 2015

Crônica da minha queridíssima aluna Eltania André

EU E CAMPOS DE CARVALHO

 

Para Newton Santana

 

 

 Meu professor de artes sempre nos instiga que é preciso aprender a olhar. A metafísica do olhar! Ele me pede ousadia: desmoronamento do que estava acomodado. Insinua que subjetivamente somos maleáveis como a terra que manipulamos. Insinua, inclusive, que sou capaz da intervenção na argila e ou na pedra. Deve estar maluco o homem. Deveria ter desconfiado quando me matriculei pensando em finalidades terapêuticas; a arte exige mergulhos na nossa própria subjetividade e no que se estabelece como coletivo. O soco no estômago. 

 

Penso que meu professor de artes é um desses homens que aprendeu a olhar. Mas por que não compartilha atalhos? Entendo que é preciso driblar o que já se estabeleceu e reinventar o olhar, reconduzir a maneira com que vejo, transcendendo os objetos e os próprios conceitos sobre eles e o mundo. Não adianta contar apenas com a engenharia das sinapses se a mecânica da harmonia estética exige outras batalhas, das quais, desconfio, nunca mais conseguirei me desvencilhar. Poderia alienar-me, distraidamente, enfiando minhas mãos numa revista de moda ou Caras (ou sonhando com a vitória de um time nos campeonatos de futebol) ao invés de argila, pedra e palavras. Por que, então, persisto com a literatura e com essas novas experiências? 

 

Houve uma época em que me diziam: se queres ser psicóloga, é imprescindível saber escutar. Estou até hoje tentando afiar os ouvidos! 

 

Em meu íntimo, Campos de Carvalho me provoca: “Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris”. Bela dica! Preciso também assassinar a lógica, e assim entrar (o que já se faz compulsório em mim) no universo da imaginação, da criação e do absurdo. 

 

Penso no risco ao qual me submeto, enquanto ouço-me tocar a campainha para mais uma aula no ateliê da rua Teodoro Sampaio. 



quinta-feira, 21 de maio de 2015

"A escultura é a mais eloquente e silenciosa das formas artísticas. Ela é feita de pura matéria e concebida para expressar o mínimo. Ela exige a cumplicidade de seu fruidor. Diante da escultura não há espectador inocente. Ela não aceita comtemplador distraído. É necessário que seu contemplador a conheça de todos os ângulos......"
Parte do texto do livro O ofício da Arte: A ESCULTURA de Jacob Klintowitz.
Foi apresentado pela Simone Queiroz  e eu recomendo uma leitura.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Nana Santos - Uma visão do Atelier.



E eu com a cabeça cheia de tarefas nesse semestre que se inicia pra valer, quase esqueci de um pedido muito especial de duas pessoas mais especiais ainda. Achei que era simples falar sobre o que eu senti naquele dia úmido em São Paulo, quando andando sem rumo, nos deparamos com um portão simples, que revelava um corredor longo e uma porta rústica. Tudo ali foi estranho pra mim, desde as escadas para baixo, até a escultura logo na entrada do ateliê. Imaginei, "nossa, aí dentro me aguardam situações embaraçosas". O quão enganada eu podia estar quando a porta se abriu e eu logo fui recebida por sorrisos e abraços calorosos... Como eu ainda consigo me surpreender com pessoas, mesmo achando que já conheci todos os tipos, eis que me deparo com um baiano acolhedor e prestativo, que faz todos se sentirem em casa e já coloca todo mundo pra por a mão na massa! Difícil explicar a quantidade de informações que meu cérebro foi armazenando, esculturas com asas, sem rosto, nas mais variadas poses, cores e texturas. Um frenesi. Ao ser convidada a mexer com a argila, mais uma surpresa. "Mas eu só brinquei de massinha e era péssima nisso." Meu apelo foi em vão, mas eu quis, desde o início, tentar. "Primeiro você vai começar assim... Faz uma base, pra essa parte que vai ser o rosto." E em dois segundos a parte dele já estava pronta, como num passe de mágica e eu ainda estava lutando pra assimilar como amassar a argila dura e gelada. Primeira parte, pronta! Que sensação incrível conseguir seguir esse passo-a-passo, que pra muitos parecem uma besteira, mas pra mim era como uma prova! Muitos outros passos se seguiram e eis o resultado expresso na foto abaixo. Tá, não é nenhum David, mas me senti extremamente feliz com o resultado. Conheci pessoas incríveis e de um alto astral fabuloso, que dividem ali suas alegrias, sua cultura, um pouco da sua história e do seu talento. Todos me trataram como se eu sempre estivesse ali e eu acho que estava tão imersa na minha tentativa de dar um rosto à argila, que acabei perdendo a melhor parte, a inteiração com os outros. Pra mim, foi uma terapia. Recomendo a todos e pretendo ter essa oportunidade de novo. No fim, assim como a vida, admirei a minha "obra", tomei coragem e transformei tudo que estava pronto e me tomou tanto tempo em apenas mais um pedaço de argila. E que esse pedaço possa servir pra fazer outra pessoa feliz, mesmo que por algumas horas. Obrigada, Newton Santanna Atelier e Queiroz Simonne pelas poucas e maravilhosas horas fazendo algo que nunca imaginei que me daria tanto prazer... Arte!
Nana Santos
O específico da arte

Por J. A. Van Acker, 
Década de 80

O específico da Arte não é a criatividade.
A criatividade exerce-se em qualquer ramo de atividade — na filosofia, na ciência, no comércio, na indústria, na política e até no crime, até na guerra — enfim, em tudo podemos aplicar nossa criatividade. Segue-se que o ato não é intrínseco ao ato artístico, assim como o ato artístico não é intrinsecamente um ato criador.
Também não é a expressão o específico da Arte.
Continuamente nos estamos expressando no comum de nossa vida cotidiana — seja um gesto ou uma palavra, nossas reações, nossas preferências, seja um rito de dor, seja um riso de alegria — tudo isto se expressa sem que se faça Arte.
Tão pouco a beleza é o específico da Arte.
Para a maioria das criaturas a estética está tão intimamente ligada à idéia de Arte que lhes parece impossível existir a Arte sem beleza. De certo modo é verdade — e teremos de ver adiante o porquê — mas, seja como for, o fato é que existe a beleza sem a Arte. Não é portanto a beleza o específico da Arte. Fora desta, ela também existe, e em alto grau, como na natureza, por exemplo. Qual o artista sincero que já não tenha suspeitado de si para si que seu trabalho nem chega aos pés do mais trivial e insignificante "trabalhinho" da natureza? Além disso, deixando-se de lado essa natureza do mundo a nossa volta, todos os setores, que poderíamos chamar de mentais, ou espirituais, possuem sua estética — como a religião, por exemplo, ou até a matemática. Ao simples resolver de um teorema podemos ser surpreendidos por uma repentina invasão da emoção estética. A estética é absolutamente imprevisível: não é preciso baixar às aberrações do gosto perverso, basta citar o caso clássico do médico que consegue achar "belíssimo" um tumor. Sim, a estética é realmente imprevisível. Mas o fato é que nem esse tumor, nem a religião de um santo, nem a lindeza de um teorema são Arte — como também não pode ser considerada Arte toda a magnificência da natureza.
Mas, ao lado da estética, há uma outra idéia que também, na mente de muitos, se funde à idéia de Arte — e chegamos assim à questão da maestria. Também esta não é o específico da Arte.
Trata-se de uma idéia antiga, mas que perdura até hoje no geral das mentalidades — a Maestria! — Arte seria aquilo que é feito a primor, com invenção, com capacidade, com perfeição — não importa o que — qualquer coisa; desde mesas e cadeiras até pontes de estrada de ferro, toda espécie de artefatos, toda obra bem planejada, bem executada, bem concluída, enfim, a coisa feita magistralmente, inclusive as chamadas "Belas Artes", que seriam então a maestria aplicada à obtenção da beleza. Mas ao lado das "Belas Artes", havendo sempre espaço para a concepção da Arte como sendo um conjunto de artes — mesmo no caso de coisas simplesmente bem urdidas: a arte de enganar, a arte de persuadir, a arte de ganhar dinheiro, e assim por diante, a arte disso, a arte daquilo, a arte daquilo outro. Não importa! Arte culinária, artes gráficas, arte do diabo — tudo arte! — desde que conseguido o golpe de mestre.
 Mas, desta forma, note-se que o ARTÍFICE virá para absoluto primeiro plano enquanto que o ARTISTA propriamente dito recederá para um plano inferior, obscuro e indefinido. Ora, foi para resgatar justamente esse ARTISTA que tentamos agora uma maior especificação do seu campo de ação.
A teoria que concebe a Arte segundo as qualidades do ARTÍFICE (a Arte como ato de maestria) é uma teoria qualitativa da Arte. Maestria não é "Algo", é qualidade de "Algo". Teríamos então que o específico da Arte residiria no "como" e não no "o que". Nesse caso, porém, tanto poderíamos dizer que está naquilo realizado com paixão, ou com furor, ou com denodo, ou com audácia (como aliás também se diz). Seria assim uma outra qualidade: a expressão — entrando para o lugar da maestria como indicatriz da natureza específica da Arte. Mas no lugar da expressão, por sua vez, poderíamos ter ainda uma terceira qualidade (um terceiro "como"): a criatividade — e, no lugar da criatividade; a beleza — e assim ao infinito... Não. O específico da Arte tem de ser outra coisa. Tem de ser algo só dela.
Durante muito tempo, de fato cogitamos se a Arte não seria mesmo esse fenômeno antes adjetivo que substantivo. Tal ordem de idéias é estimulante porque, dando-se o fenômeno artístico não no âmbito da dedução mas no da apreensão sensível, e, sendo a apreensão sensível a função que detecta diretamente a qualidade, é natural e mesmo tentador irmos por esse caminho abaixo e de vez tratarmos de batizar a Arte como fenômeno adjetivo — pautando desarte seu próprio ser no diapasão das qualidades que eventualmente vá apresentando.
Esta é, aliás, no geral, a atitude da crítica. Debruça-se esta sobre o VALOR, ali se concentra, ali queima pestanas chegando, neste afã, por vezes, a atribuir principalmente a valores um tanto extravagantes apenas paralelos à Arte, como por exemplo a tendência contemporânea de emprestar uma importância exagerada ao valor histórico de uma obra de arte.
 Mas a crítica é assim mesmo. Valorar é legitimamente sua função, é de sua natureza discutir, descobrir, explicar, comentar, analisar qualidades. Porém, seria apenas enquanto se limitasse a comentadora dessas qualidades — como dizendo: "Tal obra é boa Arte por tais e tais qualidades; boa por criativa; boa por expressiva; boa por bela; boa por magistral, etc...". Mas se a crítica, extrapolando suas considerações, feitas apenas a nível qualitativo, tenta aplicar esses mesmos critérios qualitativos ao exame do próprio ser do fenômeno artístico, arrisca-se então a enredar-se em sérios problemas de interpretação. Se a crítica julga não artística uma obra por não bela, não magistral, não criativa, não expressiva, etc... ou não histórica — então está tacitamente afirmando serem essas tantas qualidades o próprio ser da Arte.
E nesse ponto novamente nos encontramos ante o velho problema do Bom e do Ruim em relação ao Ser e ao Não ser, pois não se pode negar que também em matéria artística somos quase que instintivamente impelidos a considerar mais a qualidade que o fato. A moral da história, também em Arte, é um pólo magnético que nos orienta, é ela que dá sentido às coisas em qualquer campo. Sem ela mal nos poderíamos orientar perante ou dentro de qualquer fenômeno. Poder-se-ia ter como política uma má política? E seriam de fato relações as más relações? E uma má Arte? Poderá ser sentida como Arte? Dificilmente, é claro! Quem em sã consciência o faria?
Porém há o outro lado da vertente. Uma filosofia que assim concebe a Arte como Qualidade é a mais natural. Sim, mas também levará fatalmente a um desarraigamento em relação à natureza intrínseca do fenômeno, e a uma confusão entre este e as qualidades extrínsecas que reflete. Já ficou colocado que essas qualidades extrínsecas pertencem à vida e ao mundo em geral e não à Arte em particular — coisa que nos obriga a aceitar, por exemplo, o fato aparentemente absurdo, mas verdadeiro, que nosso grandioso sistema solar, em toda a sua magnificência, não seja Arte, e que a mais insignificante das obras de Arte o seja.
Esse simples fato, dito a alguns iniciados, naturalmente não causa espécie alguma, mas dito à maioria dos indivíduos, principalmente a leigos, causa grande espanto e uma espécie de desarvoramento indefinido. Nossa época, essencialmente científica, carece de um consenso sobre Arte. A Arte tornou-se o elemento recessivo de nossa época, uma terra de ninguém, assim como na Idade Média o elemento recessivo e a terra de ninguém eram Ciência. Ao obscurantismo científico da Idade Média corresponde o obscurantismo artístico da Idade contemporânea. Mas, mesmo assim, ou por isso mesmo, é preciso obter alguma luz, alguma estabilidade nas idéias, muito embora (sendo o campo artístico um campo absolutamente livre) seja sempre perigoso estabelecer ali normas rígidas que, desastrosamente, possam transformar-se em algo parecido com leis. Mas, ao nos iniciarmos no estudo da Historia da Arte, cremos que seja necessária, ao menos provisoriamente, uma filosofia capaz de investigar mais à puridade justamente essas características que distinguem a Arte dos outros fenômenos naturais. Sobretudo o neófito — seja como aluno ou simples interessado — ressente-se da indefinição nesse ponto, debatendo-se ele entre mil vozes que lhe dizem de tudo sobre o assunto.
A indefinição, em qualquer campo, é, ou pode ser, desastrosa. No caso da Arte, a conhecida ignorância, incompreensão, o desinteresse a seu respeito reinantes hoje na sociedade são devidos, em grande parte, à indefinição. Idéias irrefletidas e opiniáticas que, gerais e esparsas, circulam ao sabor das modas e dos caprichos, bombardeiam de todos os lados o neófito, confundindo-o e levando-o a um penoso estado de perplexidade. Diante do estudante de Arte erguem-se verdadeiros títeres ideológicos, impenetráveis, exigindo valores sempre intangíveis que, embora impostos a todos, parecem estar reservados exclusivamente ao uso dos "Famosos"; circunstância essa que impede o estudante de incorporar uma idéia sólida e clara do fenômeno artístico, uma diretriz estável a que possa referendar-se internamente, tornando assim possível sua independência.
Como professores de Arte, por exemplo, têm-nos vindo às mãos estudantes completamente paralisados e esterilizados pelo que chamaríamos de "síndrome de criatividade". Não produzem, não desfrutam mais, estiolados que estão em seu sagrado horror ao "Déjà fait". Para eles a Arte tornou-se Inovação por excelência; o passado está fechado e cimentado e a Arte do presente monta-se sobre uma constante ruptura com o que foi. Segue-se que a Arte é História. A História e sua suposta constante mutação; no que o Artista é transformado em um ansioso caçador de lances inéditos, sempre fiscalizado pelo historiador que lhe irá marcando os pontos para o vestibular da imortalidade.
Essa situação, como é fácil imaginar, tende a ser neurotizante. Isto porque a Criatividade, que é um valor extrínseco da Arte, foi tomada como natureza intrínseca, resultando daí um embaçamento da consciência; o mesmo se dando com a expressividade quando é também tomada como intrínseca e não extrínseca ao fenômeno artístico. Nesse caso observa-se um fenômeno curioso, muito comum há algum tempo atrás, que era, não se ficar paralisado, como na "síndrome de criatividade", mas ficar-se embotado, não se podendo reagir a não ser sob violentos impactos que nos abalassem os alicerces, sendo assim a Arte transformada numa espécie de raio fulminante cujo fim precípuo seria o de desacomodar.
Temos assim que a confusão estabelecida entre o que é Arte e o que seriam suas eventuais qualidades, tem sido a maior causa da Babel em que gradualmente foi afundado a teoria da Arte já desde o moralismo estético de um Diderot ou de um Winkelmann em fins do séc. XVIII, quando esses autores abriram fogo contra o Rococó alegando ser este estilo "por demais frívolo". De lá para cá, então, carregou-se tanto nos ditos critérios qualitativos que, em alguns casos, chega-se hoje a negar, através deles mesmos, pura e simplesmente, o princípio da Arte, em favor de qualidades que já nada têm em comum com esta — como no caso da moderna tendência crítica que pretende exigir da Arte que seja científica! De onde se segue que o artista em tal regime é levado a renegar o rito próprio de seu trabalho para adotar toda uma série grotesca de cacoetes científicos — como atirar-se em pesquisas e na realização de experimentos, ou até a apresentar relatórios, redigir projetos ou ater-se a propostas de trabalho.
Vendo-se pois ante a confusão inextricável e infinita que uma concepção qualitativa da Arte gera no estudante, vendo-nos também ante o desânimo e apatia conformista em que jaz o público em geral, devido a essas mesmas concepções, fomos levados a dar de mão de uma vez por todas, à visão adjetiva do fenômeno artístico para adotarmos francamente a visão substantiva.
Mas em que consiste então este Próprio e Único da Arte?
O Próprio e Único da Arte, aquilo que lhe é específico, aquilo que, digamos, confunde-se com ela é, ao nosso ver a FICÇÃO. A FICÇÃO não existe fora da arte. Não existe nas "outras coisas". As "outras coisas" ou são, ou não são. A Arte (a ficção) é sem ser e, sem ser, é. Fazer Arte é fazer com que seja aquilo que não é; e fazer com que não seja aquilo que é. Toda atividade artística atua sempre nessa região média entre o ser e o não ser.
Não se trata de fantasia. A fantasia é um fenômeno diverso, como que o inverso da ficção. Embora a fantasia se dê unicamente no campo mental, está profundamente comprometida com a realidade, por um lado, e, por outro, é arbitrária, ou seja: não está comprometida com a verdade — ao passo que a ficção, podendo dar-se inclusive no campo material, só que de forma totalmente fictícia, no entanto nos remete diretamente ao próprio âmago da verdade. Sabemos, por exemplo que matar alguém em fantasia não nos exime do peso da culpa, ao passo que o mesmo ato, "praticado" ficcionalmente é algo perfeitamente inocente, algo como que pairando suspenso na isenção da hipótese.
Costuma-se dizer que a Arte é uma mentira, "artes do diabo" é o dito comum aludindo-se às artimanhas do Grande Mistificador. Mas a Arte não é um engodo, ou, ao menos, não deve sê-lo. A própria consciência do processo artístico pede que, o tempo todo, se saiba não ser realidade aquilo que ali se passa. A irrealidade, na Arte, não é mentira, é um dispositivo, um dispositivo inerente ao próprio ser da Arte, e graças ao qual nos vemos libertados da contingência dos fatos sem que com isso percamos a sua essência. A essência dos fatos (ou Verdade) sem a contingência (ou Realidade) — a Arte é verdade liberta de realidade.
Temos então que Verdade não é qualidade mas atributo do próprio ser da Arte, assim como "mentira" ou irrealidade não é defeito mas também atributo. A Ficção pressupõe o Vero e o Irreal ao mesmo tempo. Podemos observar: a Arte esvai-se, desaparece, assim que resvale da verdade ou que toque o real. Entre dois perigos a Arte há de atuar, há de mover-se, há de viver. 
Para dar uma idéia mais concreta do que acabamos de expor, tomemos o exemplo de um ator que está representando aí no palco o papel de um ébrio. Ora, para que a Arte subitamente desapareça, ou nem chega a existir ali, bastam dois casos: 1) se o ator não lograr a nota essencial que caracteriza a embriaguês e — 2) se ele estiver realmente bêbado.
Outro exemplo: tomemos desta vez, para não citar nenhuma obra em especial, esse nu hipotético que, também hipoteticamente, está, digamos, exposto na Galeria Uffizzi. Temos uma escultura, é a figura de uma mulher; ali seu sorriso, ali sua delicada forma, sua essência feminina, sua graça anatômica, sua sutil presença; mas a mulher mesma não há, não há a mulher real. Ela é toda personagem; aí nua, de mármore, como uma deusa... e está feita a Arte!
No caso do ator, tivemos um exemplo de como a Arte pode repentinamente escapar de nossas mãos. No caso dessa estátua, temos um de como ela surge. "Oh, como são vivas essas formas!", "Como vibram essas carnes!" — são interjeições costumeiramente ouvidas nos museus. Está ali a plaquinha indicando o nome da figura — trata-se de uma deusa! Mas, de fato mesmo, não há ali deusa nem carnes nem nada, há a estátua. Porém há também a personagem, há a verdade das formas, há toda uma sabedoria que se alevanta como uma miragem e, ao mesmo tempo, não há nada do que aí está. Há apenas o reflexo. O próprio mármore de que é feita a escultura lá não existe mais como mármore real, foi absorvido no todo da ficção. Ele aqui imita as formas da carne, toma seu lugar, e, como material nobre, acentua ficcionalmente aquele aspecto da mulher que é deusa, não simplesmente mulher. Em Arte, a matéria empregada faz parte da ficção.
Outro aspecto que também faz parte da ficção é o realismo. Ao contrário do que tantos temem, o realismo não faz como que a obra escape da ficção e caia no real. Seria de fato absurdo dizer-se que a realidade é realista. Só o não real pode ser realista. Notemos que o escultor de nossa estátua tratou com acurado realismo a sua forma; e já ficou dito o quão estas formas são uma perfeita miragem. Teríamos o real, nesse caso, só se o escultor, em vez dessa escultura tão realista, expusesse ali, pura e simplesmente, uma mulher, ou uma réplica que fiel e apenasmente a reproduzisse — não imitasse — com o que naturalmente iria causar sensação; mas a sensação em si não basta para que obtenhamos Arte. Uma mulher real em vez da escultura de uma mulher estaria no caso daquele ator de que falamos, que em vez de representar a embriaguez, estava bêbado de fato.
Nada temos contra as sensações assim diretamente provocadas pela natureza. Ao contrário. Achamos que as maravilhosas formas de nossa modelo são tão adoráveis nela em carne e osso quanto no mármore da estátua, ou até ainda mais apreciáveis. A Arte não é um refúgio para nosso escapismo ou para que nos elevemos acima da realidade. A Arte (a ficção) não está acima. Ela é simplesmente um recurso de que dispomos para que através de uma estratégica eliminação da contingência do real, possamos mais livremente penetrar o âmago desse mesmo real. De fato, uma vez estabelecida a natureza específica da Arte, é preciso que consideremos outrossim que esta não pode prescindir das qualidades comuns à natureza de todas as coisas. A natureza é superior à Arte. A natureza é total, sintética, dinâmica; a Arte parcial, analítica, estática. Seletiva por excelência. A Arte penetra e fixa um aspecto da verdade segundo um ponto de vista — ao passo que a natureza, indiscriminada, é aberta, abrangente, contém e processa ao mesmo tempo todos os pontos de vista. Daí a grande utilidade da Arte. Caracteristicamente limitados, precisamos da Arte para que através de uma supressão da realidade totalizada da natureza, possamos entendê-la e senti-la do nosso ponto de vista, sem contudo faltar-lhe à verdade. A arte toma do todo uma parte e dá a essa parte, graças a um truque (a ficção), uma conotação de todo.
Temos então um segmento da verdade que vive sua totalidade própria, fechada e separada da totalidade aberta do real. Não há obra de arte aberta. A concepção de "obra de arte aberta" é justamente uma dessas falácias de uma época de apogeu científico e de obscurantismo artístico, e que portanto reluta por todos os meios em aceitar a natureza ficcional característica da Arte como fenômeno. Como fenômeno, a Arte é tipicamente fechada, vive seu mundo próprio, como um universo entre parênteses, que como tal é obviamente fixo e inalterável. Toda dinâmica ali existente dá-se apenas interiormente, no interior do dado ficcional estabelecido, que, uma vez concluída a obra, segue seu caminho próprio, separado dos caminhos dos dados da realidade exterior que, deste ponto em diante, não mais interferem.
É bem verdade que a Arte, antes de ser um fenômeno cultural, é um fenômeno natural como qualquer outro. Um fenômeno natural, espontâneo e necessário — e, nisso, a Arte é também parte do real. Como fenômeno, a Arte tem também sua contingência. Mas a Arte como Arte, contém apenas a miragem da contingência. A arte é um fenômeno reflexo. Daí talvez tê-la Aristóteles chamado de "imitação". Evidentemente, como todos sabemos, essa definição de Aristóteles da Arte como imitação da natureza é o que há de mais contrário às concepções modernas de Arte; mas isto mais porque geralmente se confunde a imitação com a reprodução. A reprodução é uma simples duplicação do real — ao passo que a imitação é o real que justamente perde sua realidade por estar apenas refletido em outro real que não lhe é próprio. Lá ficou sua verdade despida de realidade e travestida nesta outra "realidade" fictícia que é a Arte, ou como é o sonho, como poderíamos dizer também, ou que é a ficção, ou que é a imitação, em suma: que é o ser-reflexo.
E é desse ser-reflexo que emana então este encantamento todo especial, todo particular, este interesse próprio, característico, íntimo e profundo, que é o interesse que a ficção provoca, típico do espetáculo artístico, e diferente do interesse suscitado por qualquer outro espetáculo real, por mais momentoso que seja. Um macaco que ponha a imitar pessoas no zoológico, pessoas que ali estão a observá-lo, imediatamente provocará nesses circunstantes uma mudança de interesse. Surgirá ali uma platéia. Ver-se-á o macaco de repente, como outros olhos, ver-se-á nele o homem refletido — não como uma réplica mas como algo que surge em outra coisa, algo subitamente transportado para o mundo livre e hipotético da irrealidade. O que interessa doravante nesse macaco não é nem o macaco-homem nem muito menos o homem-macaco, é o macaco-ator, esse que, embora em nível animal e rudimentar, e sem ser homem, de repente, consegue agir momentaneamente como se o fosse — assim como aquele ator, que em outro nível, sem estar bêbado, age momentaneamente como se o estivesse, ou como o mármore da estátua que, sem ser carne, fascina ficticiamente como se carne fosse.
É o fascínio do ser-reflexo que nos atrai de maneira particular. Atrai e envolve. Já na natureza bruta esse ser se insinua. Qualquer reflexo dá de si um chamamento situado alhures perto da emoção artística. É o sol refletido nas folhas de uma árvore, por exemplo, (para não falar de um vitral) que nos atrai bem mais que o próprio sol, cuja ígnea realidade, aliás, nem pode ser encarada diretamente. É a lua ou qualquer outra coisa refletida na água. É o brilho sedutor dos objetos polidos. Depois são os galos que respondem um ao outro, prenunciando os artistas que responderão também um ao outro no transcorrer da história. Depois o homem com sua misteriosa querência pela Arte, que vai desde as formas mais simples, como a criança que brinca com bonecas, até as formas mais sofisticadas, como Shakespeare fazendo seu teatro. E isso sem dizer de todos nós, artistas ou não, que fazemos todos Arte enquanto dormimos e sonhamos.
Os sonhos estão na base de todo esse complexo imitativo que podemos chamar de ficção. A Arte nada mais é senão um sonho que, em estado de vigília, é projetado sobre alguma matéria. A Arte participa das mesmas fontes-verdade dos sonhos, e participa (ipsis literis) dos mesmíssimos processos ficcionais ao elaborá-las. Por conseguinte quando falamos da Arte Grega, por exemplo, estamos falando na verdade é do Sonho Grego; ou quando falamos de Arte Medieval, estamos na verdade é falando do Sonho Medieval, e assim por diante... A história da Arte não é a história da humanidade, ela é a história dos sonhos da humanidade.